“Ou escreves algo que valha a pena ler ou fazes algo acerca do qual valha a pena escrever.” | Benjamin Franklin

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Baile da solidão

 

 



[num tempo pré-pandémico, uma estória verdadeira_ reeditado]

 

Eh, fadista deste fado de bela vista

Tens a glória deste momento na velha pista

E no andar e no falar, estás p’ra amar

És um ‘pintas’ no gesto e no trajar,

Em boas fintas rodeias tudo com o olhar


Sentes o corpo em palavras a sussurrar.

Eh, fadista marialva feito Midas

Faroleias as viúvas mais queridas

Cantas estrofes de tabernas e cafés

Conversas de tretas e parlapiés.

E a troco de nada debitas lamirés.


Pois é, fazes-te à vida, alma ferida.

Pesam-te os anos e os enganos,

E a brilhantina escorre os cabelos

Já grisalhos, mas bom de vê-los

Calças de ‘jeanes’, camisa às cores

Dum amarelo berrante de dores

Um lenço preto escorrido e com flores

Sapatos rasos e deslizantes de alto brilho

E no pescoço, pouco escondido, dourado fio

Como o relógio, a bracelete e a pulseira

Dão à figura um marialva de cabeleira.


Fins-de-semana nas danças de salão

Espalhadas um pouco por toda a parte

Esse condão ‘engatatão´ da tua arte

Encobrindo palidamente a solidão.


Solto o salão aí vais tu dando uma mão

Lanças amores, pedes favores, apertas dores

Puxas pró tango várias estampas

De outros tempos e outras pampas

Ora dançantes, ora sentadas e alinhadas

O rouge intenso e báton vivo põe-nas coradas.


És bailarino, exímio, na escola de outras eras

Onde as horas não eram de tantas esperas

Ficou-te o ‘bicho’ enraizado dum pé de dança

Em qualquer baile, ou mera festa, desde criança


Mas esqueceste que tudo é feito de mudança

E agora trazes nos olhos a já pouca esperança.


Dás a perninha em qualquer baile

Rasgando o espaço desse cansaço

Saltas sem rede e avanças a cada passo

És uma estrada escura sem qualquer raill .


Nos intervalos bebes geladas umas ‘begecas’

E até pensas que vai ser fácil dar umas ‘quecas’

Lembras as noites e os bailaricos de S. João

O vinho verde a madurar sardinha e pão.


As matinés, já não em boites ou cabarés, 

São estas voltas uma constante troca de pés.

Repimpas firme uma silhueta de juventude

Lembrando os verdes anos muito amiúde


Na música ao vivo, soalho antigo, e já comido

E o jantar fica perdido e ouvido algo entupido.

Lá dás o corpo ao manifesto e sem protesto

És suave sombra a envolver o corpo delas

Mas ao deitar é que são elas.

Perdes as velas.

Dói-te a alma, os cansados pés e as costelas

Vês-te em alto-mar, num barco a naufragar

Sempre picado, sem sentinelas p’ra te acordar

Os pesadelos, tristes flagelos, dormem contigo

Feito peão deste destino bem à medida da solidão.


E, mais uma vez, dormes sozinho, como um mendigo …

2 comentários:

  1. Seu poema nos remete aos efeitos do tempo, às lembranças de outros tempos, à solidão que se faz presente. Belo, mas triste. Abraço.

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  2. Ayyyyyyy Luis...que bonito esto...y que triste también!! Me encanta como describes a esos bailarines y sus danzas, en este caso nuestro tango! Y el arte es asi.. detras de él, se esconden historias, amores, tristezas , pero cuando se sale a la pista , eso queda olvidado.. Luego en soledad, todo vuelve a la memoria... Belleza de letras en este dia.. Te dejo mi abrazo poeta.. y lo olvidaba pero has elegido una foto preciosa para acompañar las letras

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