“Ou escreves algo que valha a pena ler ou fazes algo acerca do qual valha a pena escrever.” | Benjamin Franklin

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

A mensagem

(Conto que pode ser de Natal, ou quando o homem quiser...)

As persianas brancas, corridas, das varandas, não deixavam ver se a casa era habitada.

Há meses que se mantinham assim, fechadas.

Nem uma nesga de luz por elas entrava ou escapava.

Era um segundo andar dum prédio vermelho e branco, com uma águia como brasão. Um verdadeiro palácio real. Chamavam-lhe:  "A  Catedral".

Naquela noite, bem tentou entrar pela chaminé mas, tal era a confusão de tubos confluentes, que não conseguiu determinar com exactidão qual era o pretendido.

Por isso, desceu ao patamar de entrada e esperou que alguém abrisse a porta para, assim, entrar. Como companhia, uma velha estátua a querê-lo desafiar.

Não queria tocar à campainha para não desvendar a sua identidade e fazer cair a surpresa de tal visita.

Era já muito tarde. A noite aproxima-se da madrugada, ou esta daquela. Tinha de se despachar sem que o sol o apanhasse. Por fim, houve um inquilino de horas tardias que lá acabou por aparecer. Pediu-lhe para com ele entrar. E assim fez.

Chegado ao patamar do segundo andar,
introduziu por debaixo da porta o pequeno subscrito, que trazia entre outros numa pasta, com a indicação de morada correspondente. Esta missão tinha sido cumprida.

Então, era a seguinte, além do endereço, a nota escrita à mão, por linhas tortas como só deus sabia:

"Do Menino Jesus

             Para JJ, o menino do pedido:

Devolvo-te esta carta, sem atender ao pedido, por esta se ter perdido. (Talvez culpa dos CTT's)

Sei que já és crescido. E todo o tempo demorado - anos passados - foi para ti desilusão e descrença.

Já em mim não acreditas e o sonho de menino, também se perdeu, ou foi por ti destruído. (Aqui, Jesus, não tem certezas. Ficará para mais tarde avaliar)

Teu sempre Menino.

ass).….. J.C."

DESEJO-VOS

NATAL FELIZ

ANO NOVO PRÓSPERO

🙏

BOAS FESTAS 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

falar de amor...

se alguma coisa permanecer
para além de mim
que seja aquela flor que me quis
aquela flor que não cultivada em jardim
foi acarinhada por mim.

ou aquele verso
que um dia tentei escrever para ti
- a falar de ti, a falar para ti -
sem contúdo ter o tempo de o ser
para to dizer.

ou, ainda
que seja um pequeno sopro de ar
ou brisa nascida no teu mar.

se alguma coisa permanecer
para além de mim
que seja memória para nela viver.

fuga

a vida é uma cabra 
a roer madrugadas
quando o rio 
enlouquece 
por falta de oxigénio.

desce a cidade 
sobre escombros 
de solidão
onde a noite 
fria 
não foi mais 
que uma prisão.

e tu caminhas
entre estrelas 
como se a luz 
distante 
te lembrasse 
que há um futuro 
inatingível
perdido nos bolsos 
vazios.

às tuas mãos
prendem-se memórias 
dum tempo esquecido e 
dos calos antigos
as gretas são a tua estória
feita de angústia
porque a noite 
ao teu encontro
também caminha
e tu não sabes 
onde te leva 
tão escuro encontro.

mas tu caminhas
ainda
por sobre pedras
por entre feras
que ameaçam
que ferem
se não correres
para fora delas.

são tão estreitas 
as tuas margens
que o rio 
que sonhas ser
corre na violência 
de alma negra
dum precipício
a querer te ter.

e tu caminhas
mesmo sabendo do 
não-retorno
na mesma estrada 
onde nasceste
e nela cresceste
e só ela conheceste.

caminhas ou é a estrada
que te caminha?



sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

distâncias

1.
esta noite
são mil e uma
as estrelas
a prenderem-se
ao olhar.

amanhã 
quando o dia acordar
uma só estrela
irradiará outra luz
na vida a palpitar.


2.
pudesse a noite ser dia
e varreria a escuridão
tão necessária
ao silêncio dos olhos.

pudesse o dia ser noite
e confundiria este pássaro
que, de cabeça sob a asa
sonha a madrugada.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

ai, sonho

branco sonho 
que de meu
de mim saiu 
e se perdeu.

asas livres, 
verdes prados
cavalo à solta, 
louca jornada
sem rédeas, 
sem lança, 
ou espada
tempos dourados, 
noutros fados.

jamais se prendeu
recorrente sonho, 
que já foi meu.

sinto-o agora 
longe, distante
como se o vento o apagasse
escrito, 
que foi, 
de areia e sal
numa praia 
que esconde todo o nosso mal.

acredito que voltará
um dia... reviverá.


olharás meus olhos
e a tua vida neles verás.

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

de ti


foto do autor

de ti
levarei as longas madrugadas
e as noites contigo passadas.

levarei o sol das manhãs
e o canto da tua voz.

levarei as lágrimas caídas
em tardes desprovidas.

de ti
levaria todas as nascentes
puras e inocentes
no desejo da sede
que o olhar longe mede.

de ti
levaria essa água cristalina
a correr pela boca do Poema.

a ti
se não bastasse
e mesmo que a noite se calasse
voltaria à luz do teu olhar
num regresso sem parar.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

como se fosse ar a respirar

se tu quiseres, amor
fecho os olhos loucos
aos dias sombrios
à incompreensão
ao desencanto
à inquietação.

nada me fará confusão.

nada ouvirei e
da minha voz
um só som ao respirar
um só coração a latejar.

não haverá canto
ou sereias que me desviem
desse destino
neste caminho
ao teu encontro
com carinho
mesmo que pareça ilusão.

se tu quiseres
voltarei ao tempo esquecido
como se fosse ontem
e recomeçarei meus passos
com mãos estendidas
ao teu abraço.

se tu quiseres
serás de novo meu porto
meus cais
meu mundo ancorado
minha estrela
na tarde começada
como se o princípio do mundo
fosse a luz que me guia.

se tu quiseres, amor
faço deste dia interminável
o dia do nosso esplendor.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

luz

 


dorme a cidade

e as nuvens escuras

deslizam suavemente

sobre os sentidos.


espreita a lua

as almas adormecidas

por entre a paixão

solitária

sem outra razão

que não, a certeza

do equilíbrio da matéria.


ruas vazias

e pouca iluminação

artifício

moderno duma civilização

aguardam o tráfego

desgastante

do dia-a-dia.


amanhã haverá outra luz

que a tudo nos conduz...


domingo, 28 de novembro de 2021

ecos

dobram-se ao tempo 
ao vento
o estado de espírito 
o pensamento
recordações 
remanescentes 
ecos distantes 
de sonhos 
que seriam da vida 
alimento.

sábado, 27 de novembro de 2021

corpo presente

pedi-te um sorriso
sob todos os ângulos
para ver uma imagem
multiplicada
em espelhos e planos e
da profunda visão
reflectida
veio-me a cristalina
certeza
melhor fora
a física aproximação.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

esta nossa casa

onde já se não brinca
com bolas de sabão
na mágica descoberta
dum Universo em expansão.

esta nossa casa
onde o riso duma criança
se perdeu
e a memória se desvaneceu
como se o Mundo fosse um pião
lançado em rodopio
tão velho como qualquer ex-campeão
já cansado
de contemplar a sua destruição.

esta nossa casa
escureceu
pelas minhas e outra mãos e
a criança que fui
deixou de ser
onde tudo era inocência e criação.

e que a corda enrolada desse pião
mais parecia uma lança
a conquistar um coração.

mas se tu quiseres
- certo, amor?
na hora que chegar
voltarei a brincar
e lançarei os dados
sem nada ter a ganhar.

deitarei à sorte e esquecerei
que o nosso Mundo
deu um trambolhão.

esta nossa e velha casa
ainda não caiu
mas cada mais
a vejo mais pequena...
com pena.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Sina na mão

As linhas traçadas na palma da mão
são brancas
como asas abertas do teu coração.

Leio-as - ou talvez não.

Tocá-las-ei por dentro
à luz do dia quando o sol brilha
e a transparência dos teus olhos
me digam se são verdadeiras
ou não.

e, à noite, levo-as presas 
para com elas sonhar, mesmo 
não sabendo o que são.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

marés

difícil este mar enigmático
sem se revelar
esta bruma da manhã
sem levantar
que não deixa o olhar poisar.

o primeiro amor
a primeira ilha
a floresta virgem
e a frescura
num corpo desenhado
sem dor
e a memória etérea
que já foi
embarcada em mistério
por esses mares nunca
nunca alcançados.

domingo, 21 de novembro de 2021

A fome



Adeus Maria
Que eu vou p'ró mar
Buscar sardinha
P'ra seres rainha
Ela é fresquinha
É como a prata
Não tenhas medo
Que o mar não mata.
(popular - exerto)

- Não vás ao mar
esta manhã não vás ao mar
filho
ele está bravo
e pode-te apanhar
e eu aqui fico 
sozinha
a lamentar
ter-te deixado 
ganhar o pão
para nos sustentar!

- Olha lá, mãe
não tenhas medo
de quem
de braços abertos
nos recebe
como ninguém;

o mar não mata
a fome é que mata 
nesta desgraça
que nos sustem!



(Integral)

Não vás ao mar, Tónho
Está o mar ruim, Tónho
Se vais ao mar
Fico sem ti, Tónho

Ai Tónho, Tónho
Tão mal estimado és
Ai Tónho, Tónho
Nem umas meias tens p'rós pés

Adeus Maria
Que eu vou p'ró mar
Buscar sardinha
P'ra seres rainha
Ela é fresquinha
É como a prata
Não tenhas medo
Que o mar não mata

Tem dó de mim, Tónho
Não sejas mau, Tónho
Não irás mais, Tónho
Não irás mais
P'ró catatau, Tónho

Olha p'ró mar, Tónho
P'ronde é que vais, Tónho
P'ronde é que vais
Tás'ma matar, Tónho
Não posso mais, Tónho
Ai Tónho, Tónho
Tão mal estimado és
Ai Tónho, Tónho
Nem umas meias tens p'rós pés.


terça-feira, 16 de novembro de 2021

novembro


foto do autor


são perfumes na tua mão
as carícias desta brisa
em extemporâneo verão.

flor sempre
de novembro antigo
e presente.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

O ladrão

Eu conheci um poeta
Em tempos que já lá vão
Que escrevia como meta
As dores do coração

Tinha a louca paixão
De dormir durante o dia
E à noite pisar o chão
Até sentir o que via.

Porém, certa madrugada
Cansado de tanto andar
Olhou a cidade encantada
Sem saber como a amar

Sentou-se frente ao rio
Olhando a outra margem
E sentiu um forte arrepio
Por ter a vida em paragem

Não esperou pela demora
Do sol que não aquecia
Levantou-se, foi-se embora
Vendo que a vida o não queria

Em casa acabou de entrar
Deitando-se p'ra descansar
Mas na cama à sua espera
Estava a morte p'ro levar

- Chegou agora tua hora
Procurei-te p'la noite fora
Já que de dia não te via
Chegou agora a tua hora
Este é o momento que seria
Se antes a noite fosse dia!

- Tens o desejo ancorado
No teu peito sempre fechado
Do coração não abres mão
Tão cerrado na escuridão
Por isso levo-te comigo
E ficarei sempre a teu lado
Num escudo bem apertado
Onde eu sou só um ladrão!

(coisas antigas -poema não datado)



segunda-feira, 1 de novembro de 2021

tesouros

já oiço o bater do meu coração,
onde antes, tão silencioso,
- que por ele não dei -, 
nos anos em que me fez viver.
já oiço búzios plantados 
nos ouvidos
de mares onde dantes navegava
e ventos cruzados 
que me trazem os sons 
de gritos passados
que nunca quis ouvir.
já respiro o ar de todas 
as madrugadas,
e o silêncio de todos os arco-íris,
- no desejo plantado de te poder 
abraçar -,
como da primeira vez,
em que o sol era um despertar
e a bruma se dissipava no teu olhar.
- já consigo ouvir-te, tocar-te, ver-te e
sonhar-te!

sábado, 23 de outubro de 2021

Compaixão

Não pétala mas flor
Inteira - num todo - esplendor
Seria assim
Esta visão quase sonho
Ou alucinação
Sem castração.

Não rio mas nascente
Corrente - em crescente fio
Seria amor
Esse sentimento adolescente
Sempre presente
Sem prisão.

Não mão mas coração
Palpitante - em peito aberto
Seria afeição
Essa carente ilusão
Ou utopia
Sem data sem oração.

Não... à sede do perdão
Mas sim à compaixão.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

cais

barco nas águas paradas
rasgadas mágoas
e sulcos profundos da quilha.

na pele o desenho da noite
e espuma 
em ventos cruzados.

a tormenta amansada
enfim
no porto seguro das tuas mãos.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

estorninho


"Quão pacífica seria a vida sem o amor.
Quão segura.
Quão tranquila.
Quão monótona."
Aristóteles
2° livro da Poética
in: "O Nome da Rosa"
......

estorninho, pequenino nada a despontar na alvorada

negro pássaro

pequenino ponto com coração a palpitar.

começa o dia, partindo, e deixa a árvore abandonada

na espera da chegada, onde haverá em voo picado de regressar e

encontrar lugar.

junta-se aos outros, em bandos que formam milhares,

nuvens em voo no céu a clarear.

pequenino nada, voa para além dos montes, a cruzar os céus,

na perícia que aprendeu.

nunca se perdeu.

apesar de pequenino, o seu mundo é melhor que o meu. é tão livre que

não sei onde vai, o que faz ou o que tem, para no ocaso à mesma árvore voltar..

nunca se esqueceu. até hoje, que resolveu emigrar.

quereria eu também partir?

talvez...

[meu corpo não tem forma; nem ensejo; nem vontade de ser

outro que não eu.]

mas, ser aquele pássaro que cedo aprendeu a voar e,

logo pela manhã, sonhar.

sentir-me livre como o vento, e no meu pensamento um só desejo,

fazer-me ar.

esquecer os silêncios que me fazem tudo recordar, ensurdecedores, 

desde o acordar.

mergulhar...

no vazio como se não houvesse amanhã,

ser um corpo ligado ao espírito e um só destino a desbravar:

ser como o ar a sobrevoar o extenso mar.

sem regressar...

 - Quão maravilhoso é ser-se livre e amar!

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

...

sonho no sono pesado
e no sonho, o choro
por teu choro largado.

mas acordado
sorris
aqui ao meu lado.

.....

A vida é tão curta para um só sonho
Instante, apenas, sonhado 
Que das mãos se desprende
Esgotado
Como folha seca, em voo
Ao chão, chegado
E a árvore criadora, num adeus
De mágoa, pelo fim 
Do ciclo, acabado. Porém
Outro sonho desponta, já
No firmamento
Sem, contudo, esquecer
A vida, que foi, daquele sonho
Amado.

.....

Casa saqueada
De sentimentos
Ao deus-dará
Do esquecimento
E a lua presente
Testemunha dormente
Da cama sem gente.

.....


giram os ponteiros
mais lentos uns
do que outros
sobre eixos invisíveis
como a vida translúcida.

e não se deu por nada.

sábado, 11 de setembro de 2021

retalhos de vida

 A tarde a chagar ao fim sem, antes, não aproveitar os últimos raios de sol para, "esplanadar" um pouco e beber umas " imperiais". 

Tantas eram as mesas cheias de gente que esperei um pouco para disponibizarem mais.

Á chegada, distribui cumprimentos, em especial a uma velha amiga, a Carla, e falamos dos filhos (filhas) e da saudade do Mário, que à muito nos deixou: seis anos.

Qual não foi o meu espanto quando, na mesa em frente, depois de me sentar, vi a d. Maria José, mãe do Mário, de 93 anos, a comer um gelado.

Parecia mais pequena, mais solitária, mais triste. Estava tão bela que a sua branca cabeleira era as únicas nuvens no horizonte.

Fui ter com ela e disse-lhe que tinha estado a falar do filho (único) e da falta que nos fazia.

O Mário tinha sido piloto de hélis durante a guerra colonial, em Moçambique, e era dele a expressão "zigarolho", a máquina que pilotou.

Com a imensa bebida ingerida, no meio de dois casamentos falhados, lá deu cabo de dois fígados, um transplante, e uma vida de bagaço, logo pela manhã, até adormecer ou esquecer-se do caminho para casa.

Dei-lhe um beijinho e disse-lhe que ele deveria estar a olhar para nós, pela coincidência de ter estado a falar dele, com saudade.

Comovi-a e, no meio de recordações, disse-me que não sabia o que andava cá a fazer, - embora a sua casa tenha sido visitada pela Segurança Social e terem ficado admirados pela limpeza e actividade da sua longa idade, sozinha -, pois ainda agora tinha morrido um homem bom, quase da sua idade, o dr. Jorge Sampaio.

Disse-lhe que alguma razão haveria de haver...para cá continuar.




terça-feira, 7 de setembro de 2021

07-set-2021

hoje é o meu dia. 

vou pensar em tudo para não pensar em nada.

meu grito do ipiranga foi há muito libertado.

pelo meio guardei no sótão o tempo das marés batidas,
dos amores, paixões e traições,
de amizades e frustrações.

tudo fechado a sete chaves.

nada mais me oculta as terras altas
e o mar-chão
com que beijo as tuas mãos.

- hoje é o meu dia

a ti o dedico!

sábado, 4 de setembro de 2021

côncavo e convexo




preciso de ti
mas também preciso do silêncio
em mim
sem ti.

preciso de estar só
comigo
sentir-te ausente
e desejar-te presente.

preciso, enfim...
preciso de pensar em ti.

.....

não sei o teu nome
nem a forma do teu sorriso
não sei quando chegaste
nem o passo que a mim deste.

não sei donde vieste.

duma curva da estrada
tu apareceste do nada
como serôdea andorinha 
que não quer ficar sozinha.

não sei ao que vinhas.

uma luz em arco-íris
tesouro por mim recebido
num horizonte perdido
que de meu a vida fiz.

não sei o que me deu
para ficar sempre teu.



domingo, 22 de agosto de 2021

o mar

de olhos fechados


trazia nos olhos os cais de embarque de 
um navio já sem mar.

adivinhava-se-lhe uma tempestade 
nas águas revoltas
quando dos seus passos uma 
linha imprecisa se desenhava na amargura 
da pedra.


outras vidas tinham sido a sua 
quando, mais novo
nos caminhos de oceanos 
conhecia um lar.

ainda se lembrava, vagamente, 
o primeiro porto 
onde o sol prometia horizontes
em ilhas virgens
para se poder encontrar 
e, fazer sentido 
do seu destino.

agora, perdeu a vontade de 
partir 
para esse, ou um 
outro qualquer lugar
a que quisesse chamar seu e acostar.

já só quererá fechar os olhos 
descansar e... ver o mar.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

plenitude


foto do autor


Uma sinfonia de ausências

espalhava-se pelo corpo suspenso

como uma ave na copa das árvores

após escapar do cativeiro.


Sob a sombra imobilizadora da voz

ouvia longe os sons dum mar agitado

a bater nas fragas enraizadas

na teimosia duma existência sem fim.


Pensava naquela lua cheia de Agosto 

a pratear-lhe  o desgosto

em contraste com a harmonia deste dia.


Era um tempo que agora vinha despertá-lo

dentro do aconchego dormente da sua vida;

um desejo na hora vegetal; uma sêde

 estendida ao sangue, em caudal de rios

 intempestivos. E o movimento de todas as

 árvores à sua volta, como se ele fosse um

 minúsculo planeta, numa constelação de

 recordações.


Dizem que as árvores morrem de pé

ao contrários dos homens com ou sem fé. 


Deitado, via-as reclamarem da

incompreensão da sua linguagem, da sua

mensagem: o conhecimento dos ventos, da

imobilidade e do sofrimento; da luz crua das

manhãs; da chuva, benção e tormento; e das

noites solitárias em que, do silêncio, tiravam

prazer.


Incontidos os sentidos, sentia, no seu mais

profundo ser, todas as cores da alma 

a dançarem, derramadas, na folhagem 

verde daquele momento.


Estava só, mas tinha todo um mundo a

 rodeá-lo.

domingo, 6 de junho de 2021

O jardim

Lembra-me um jardim 

este meu sonho:

um banco, a sombra e tu 

um pouco longe de mim.

Lembra-me 

a árvore ao lado da clareira

(essa árvore que vivia em mim)

e no meio desta

o lago a espelhar-se entre o sol e 

a sombreira.

Lembra-me a tua silhueta 

ao fundo 

e o entardecer a doirar a tua pele;

os aneis brilhantes 

dos teus olhos, castanhos 

e a doçura desta luz a pentear-te.

Lembra-me quando te aproximaste

e gravaste em mim

um coração cheio de perfume

e por baixo a palavra sem fim:

"amo-te".

Deste meu jardim

a árvore que vivia por mim

(acácia rubra de paixão)

deixou cair uma flor

ao teu regaço, amor

uma só flor essa que escolhi 

e ta ofereci.

Lembra-me este sonho

como se acabasse de o sonhar

acordado

e o dia fosse igual

igual, nesse meu jardim.

sábado, 29 de maio de 2021

o leito

I.

tenho um rio dentro de mim

mas a minha sêde é a sede de 

todas as angústias.

lá moram as mágoas que 

não sabem nadar.


II.

Tu eras vida

ainda não crescida

eras tudo num pouco nada

pequena semente germinada

eras esperança na madrugada

eras o que meu destino almejava

eras o que não vi

e o meu amor em ti.

Tu eras tudo o que senti.


sábado, 15 de maio de 2021

meus olhos em ti

alguém que tem meus olhos

meus olhos vivem além

meus olhos servem um bem

em outros olhos de alguém.


alguém da minha janela

a esconder o nome dela

por serem tantos os nomes

sem saber qual deles o dera.


meus olhos vivem nos dela

meus olhos riem nos dela

e junto à minha janela

eu vejo-os no corpo dela.


são olhos herdados de mim

como olhos que outros não vi

serão sempre olhos em ti

que de meus não terão fim.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

desatino



das margens do tempo
o coração arde
sem compreender porquê.

fosse eu um rio
apagaria o fogo desse desatino
com que queimas palavras
que deram nome às coisas.

das cinzas 
formaria novas palavras
que levariam aos teus olhos
novas formas
novos destinos.

... e  correria para teus braços
como da primeira vez.


"- ai, a puta da ladeira está cada vez mais alta!".
( comentário duma velhinha.)

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Língua Portuguesa_ o sonho


[Dedicado ao Dia Mundial da Língua Portuguesa]

construí um sonho tão leve como o ar
e do sonho quis que aprendesse
a voar.
nuvens e raios de sol
pairaram
nesse meu sonho
para que ele pudesse
ao céu chegar.
ainda ao longe o sonho viu
o azul do mar e
tanta terra a que chegar.
de braços abertos
esperou dos ventos
um abraço de asas
para se levitar.
e o meu sonho
iluminado
se fez na língua voar.
do chão enraizado
o sonho sonhou
com o coração a latejar
o infinito dum olhar.

domingo, 2 de maio de 2021

Mãe


Pablo Picasso

A primeira palavra
Em cada verso teu
Mãe
E em cada letra
Um castelo de Amor
Dos dois.

É Maio. És Poema.
És a Primeira Primavera.

sábado, 24 de abril de 2021

O meu 25



(dedicado 
Salgueiro Maia 
herói improvável de Abril)

Numa já distante madrugada
Lisboa foi tomada.

Salgueiro Maia
- e os seus camaradas -
abandonou a parada
derrubou a ditadura
e voltou a casa
sem querer louros de nada.

Fez-se Abril
duma primavera que tarda em surgir.

.....


25.04.1974

(dedicado a Graça Pires e à Liberdade)

eu era cego
e não sabia
era pobre
e não queria
era escravo
e padecia
era triste
e não sorria.

vivia uma prisão
que me feria
sem saber 
da liberdade
que haveria.

até um dia...

dia de liberação
onde um país
rasgou as grades
saiu às ruas
e chamou sua
toda a cidade.

fui feliz nesse dia.

domingo, 11 de abril de 2021

a arte da memória

foto do autor

o mar vem-me falar
dum tempo antigo
e tráz-me o cheiro
guardado
no museu fechado
do que sou eu.


nesses momentos
arejo o espaço
retiro o pó
abro a exposição
e começa o leilão
de pensamentos.

por fim
tudo é rematado
pelas ondas brancas
da memória.

mas meus olhos
perdem-se
no silêncio dos anos
e nas vozes extintas
deste mar
como se fossem sombras
presas
num império de luz
a cobrirem o azul dos sonhos.


domingo, 4 de abril de 2021

As palavras tardias

AQUI: a inspiração

Por aquela porta entram sonhos
palavras esquecidas
antigas
guardadas em gavetas de solidão
que foram escritas
por uma sabedora mão
e hoje aparecem
como se as árvores crescessem
ainda
em primaveras de paixão.

Por aquela porta
todas as palavras são lembradas
ditas
com o peso e o calor
dum profundo e sentido amor.

terça-feira, 30 de março de 2021

O lado B


Livro à cabeceira
Fechado
De sonho calado
Este Fado
Na página encerrada
A perder-se na madrugada.

Sem vaidade
Dorme a saudade
De voltar a ser estrela.

quinta-feira, 18 de março de 2021

encontro de olhares

[...]..."Gostaria de escrever sobre alguma coisa essencial:
uma casa,  um copo de vinho à noite...]
in:  filme  "Falsche Bewegung" - (Movimento em Falta), de Wim Wenders, 1975 - Restaurado

Tenho a cabeça cheia de sonhos e perco-me na tentativa de os poder agarrar. 
Queimo o silêncio na lareira com as chamas hipnotizantes dos pensamentos e, dos sons leves da lenha a crepitar, vem-me um apelo distante a querer entrar.
Queria descrever o teu olhar e o leve sorriso que, por momentos, atravessaram a janela daquele comboio que partiu. E com ele seguiu quem, com este tormento, acabou por me abalar.
Não te pude conhecer nem muito menos contigo falar. Partiste sem ter chegado.
Desde aí não mais consegui esquecer-te.
Ficou-me essa obsessão de ter perdido a única ocasião de te conhecer. 
Aquele espaço, aquele tempo, em que tudo poderia acontecer.
Foram momentos marcantes que me impedem de escrever ou de pensar noutra coisa.

Quem diria que muitas horas depois, ao chegar à cidade, te voltaria a encontrar?

Passeamos lado a lado e todas as palavras
ficaram por dizer...

Já consigo escrever.





quinta-feira, 4 de março de 2021

a ponte do terror

a minha flor
atirarada sobre as águas calmas
deste rio 
é como a minha dor
- nascida nas agitadas correntes
que foram sepultura de almas
e queda de anjos nas nossas mentes -
mas que perdura
como os nomes inscritos
em pedra dura.

é uma flor virtual
com vinte anos de crescimento
e um tempo sem esquecimento.

(em memória das vítimas da ponte Entre-os-Rios - "Hintze Ribeiro")




© Reuters

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

margens

nadir afonso

dum tempo escondido
o amor
perdido
algures
entre continentes
e as carícias
dormentes.

jovens delírios
em jardins esquecidos
e os beijos prometidos
sem nunca se darem por tidos.

recuam as palavras 
amareladas
no tempo
das sombras dobradas.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Fala-me...

foto do autor


Fala-me da espera

nas estepes da escuridão

como astuta fera

a guardar crias e solidão.

Fala-me dos silêncios 

que teus beijos selavam

em gritos de liberdade

que eu tolo de vaidade

não soube apreender

o valor inocente da verdade.

Fala-me, amor 

como viveste antes do mundo

esse mundo desconhecido

para mim como inexistente.

Fala-me minha querida

da existência vivida

e da sorte da minha vida

na tua mão desprendida.

Fala-me como foi ....pois

um pouco de amor não é amor

mas serve de consolo na dor.


sonhar contigo

sonho com ela ou é ela 

que no sonho sonha comigo?

sonho o que conheço sem

que o sonho seja sonho do avesso.

e do sonho

todo o sonho é baseado no real

tão parecido mas por vezes 

distorcido

sem igual

como miscelânea sem sentido

na visão dum pequeno quintal

em noite sem luar. 

e mesmo neste espaço imaginado

guardo as impressões como se 

vivo fosse o sonho da vida a passar.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

a curva


Para lá da curva, a estrada
continua?

Nada se vê, nada se sabe, mas 
toda a lógica é a de uma estrada 
que é nada
ainda... até passar a curva da 
estrada, que foi e deixou de ser a
incógnita desta pergunta.

Vem isto a propósito da curva da 
noite estar mesmo à minha frente.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

movimento

1.

Retirei o poema do estendal
onde estava a secar.

Húmido e amarrotado
não o posso vestir
sem antes o engomar.

Amanhã é domingo
talvez não chova
talvez o possa passear.


2.

Se a vida fosse distraída
enganava-se na porta.

O carteiro tocou
para entregar um sopro de ar.


3.

Quando os valores
veem numa carta registada
há um défice de moral.


4.

Embalar a dor
é o mesmo que enganar o corpo.

Fica o espírito
sem saber para onde ir.


5.

Acordar a força
e respirar o mistério
das manhãs suspensas.

A noite pesou os prós e contras
nas contas
entre o deve e haver.


6.

Inquietação
é tanta
que já não se sabe onde pôr a mão.

Há sempre alguém
que deveria pedir
perdão.


7.

Encanto
dum laranjal feito flor.

Para quando o sumo doce
do fruto?


8.

O pastor pastoreia
também
alguma dor.

Que cabras cria
sem saber de que mães são?


9.

Tapa-se do frio
com a roupa que se tem.

Porém
a única pele que hoje tenho
deu-ma a minha mãe.


10.

Quando sentires vontade de parar
pensa naquilo que te fez começar.

....

Descansa o poema 
sobre a laje branca 
da memória. E bebe 
dos poetas a sábia 
aprendizagem das cores.

Por vezes entorna as 
tintas sobre a clara visão 
da vida, sem saber como 
chegar à contemplação da luz.

Aprende as sombras na voz 
interior da noite e 
nos silêncios das sílabas.

Sobre a colina, larga o olhar 
pelo extenso vale e faz eco 
do amor pela beleza.

Agora, que descansou dos ventos 
intemporais, 
segue ao sabor das marés,
na descoberta de novas rotas.

sábado, 23 de janeiro de 2021

dourada prisão

 



[por minha livre paixão

aprisionei a minha vida

e todo o meu coração.]



pássaro em gaiola fechado

com asas perdidas no chão

o seu sonho foi apagado

na cabeça e no coração.

agora bate contra grades

enquanto canta a canção

de nostálgicas saudades.


já não pensa em fugir

tão esquecido o voar

que a vontade de ir

deste maldito lugar

transformado em prisão

mata-lhe a respiração.

sábado, 16 de janeiro de 2021

(des)Venturas no Armário escondidas




 Eles furam as palavras 

por dentro e

instalam o ódio

como sementre em campo virgem.


Arrasam as sílabas

destroem as vozes 

fecham gargantas

queimam flores

lançam espinhos 

matam amores.


Eles não estão sós:

o seu ideológico rancor

anda por aí

acompanhado

apoiado

(sempre andou)

disfarçado

para não se perceber

como nasce um ditador.


Pisam com as botas cardadas

os ventos da história

implantando velhas ideias fascistas.


Constroem muros

aprisionam livres pensadores.


Eles não sabem cantar

(nunca souberam)

mas tocam músicas para embalar.


Não sabem o que custa

acordar 

alvoradas

de gargantas inchadas

a gritarem Liberdade.  


Eles são aqueles que na sombra

manipulam falsos valores

e destilam antigos rancores.


São milhões

as vítimas 

destes demagogos charlatões.

domingo, 10 de janeiro de 2021

desejo


foto net

1

quando de ti 

meu corpo se acalmou

eras pensamento


intemporal desejo

dependente do crescimento.



2

praias espairecidas 

de marés vivas

a perderem o nascimento


no registo da pele algo físico 

a lembrar este mar que

do horizonte apaixonado se cativou.




quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

cidade em chamas

 


Nero_Imperador Romano




arde a cidade 
na império-capital.

feras soltas

mostram os dentes
em nuvem 
de ódios a pairar.

roma moderna

dividida de nero cheiro.

(e o mundo aguarda, espantado...)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Despedida

Trinam as guitarras

do fado 

"Lisboa, Menina e Moça"

sem a voz

que se calou.


E da memória

toda a cidade branca

se orgulhou.


(ao Carlos do Carmo -1939 -2021)


domingo, 3 de janeiro de 2021

asas do tempo

Quando eu souber
do amor 
imenso que tive
uma asa se desprenderá
na queda
qual ave 
na perda do voo.