“Ou escreves algo que valha a pena ler ou fazes algo acerca do qual valha a pena escrever.” | Benjamin Franklin

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

a viagem



Mais importante que a chegada
é a viagem.
Por ela caminham os sonhos
que à partida eram desejos.

Faz-se o caminho sem reter o olhar
dum qualquer lugar
só com o imaginário no destino final.

Assim,
perde-se o momento irrepetível
perde-se o tempo na vontade de
rápidamente passar e, por fim, chegar.

fruto-semente



maturado fruto
caído
ao pé do tronco
crescido
e o aroma da terra molhada.

e a semente
será
gestação
na doçura do ventre.

domingo, 25 de outubro de 2020

As plantas







Quando chegar a primavera outras flores nascerão. Fazem isso á cinco milhões de anos. E sem saírem do mesmo lugar.
Quando vier a primavera penso ainda cá andar. A minha espécie só existe à trezentos mil anos. E movo-me à procura de bem-estar.
Quando vier a primavera irei ver o verde das plantas e a sua sabedoria. Maior que a minha. 
Quando chegar a primavera as nuvens brancas e os oceanos azuis farão parte da vida das plantas. 
Sem plantas, eu jamais teria vida. Mas para elas, a minha espécie só prejudicará a vida delas.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

perdão


Lúcio Fontana

Poderá a vida ser repetida
onde tanto de nosso foi vivido
simplesmente adormecida
num amor já tão crescido?

Poderá ser nosso outro começo
para desta vez haver algo diferente
e das nossas sinas um outro terço
rezado em dias que mais mereço?

Esse perdão que queria adquirir
peço-te agora por não saber
se outro tempo a nós há-de vir.

Deixa-me dizer-te o quanto de meu
este remorso tem razão de ser
sabendo desse mal que me perdeu.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Baile da solidão

 

 



[num tempo pré-pandémico, uma estória verdadeira_ reeditado]

 

Eh, fadista deste fado de bela vista

Tens a glória deste momento na velha pista

E no andar e no falar, estás p’ra amar

És um ‘pintas’ no gesto e no trajar,

Em boas fintas rodeias tudo com o olhar


Sentes o corpo em palavras a sussurrar.

Eh, fadista marialva feito Midas

Faroleias as viúvas mais queridas

Cantas estrofes de tabernas e cafés

Conversas de tretas e parlapiés.

E a troco de nada debitas lamirés.


Pois é, fazes-te à vida, alma ferida.

Pesam-te os anos e os enganos,

E a brilhantina escorre os cabelos

Já grisalhos, mas bom de vê-los

Calças de ‘jeanes’, camisa às cores

Dum amarelo berrante de dores

Um lenço preto escorrido e com flores

Sapatos rasos e deslizantes de alto brilho

E no pescoço, pouco escondido, dourado fio

Como o relógio, a bracelete e a pulseira

Dão à figura um marialva de cabeleira.


Fins-de-semana nas danças de salão

Espalhadas um pouco por toda a parte

Esse condão ‘engatatão´ da tua arte

Encobrindo palidamente a solidão.


Solto o salão aí vais tu dando uma mão

Lanças amores, pedes favores, apertas dores

Puxas pró tango várias estampas

De outros tempos e outras pampas

Ora dançantes, ora sentadas e alinhadas

O rouge intenso e báton vivo põe-nas coradas.


És bailarino, exímio, na escola de outras eras

Onde as horas não eram de tantas esperas

Ficou-te o ‘bicho’ enraizado dum pé de dança

Em qualquer baile, ou mera festa, desde criança


Mas esqueceste que tudo é feito de mudança

E agora trazes nos olhos a já pouca esperança.


Dás a perninha em qualquer baile

Rasgando o espaço desse cansaço

Saltas sem rede e avanças a cada passo

És uma estrada escura sem qualquer raill .


Nos intervalos bebes geladas umas ‘begecas’

E até pensas que vai ser fácil dar umas ‘quecas’

Lembras as noites e os bailaricos de S. João

O vinho verde a madurar sardinha e pão.


As matinés, já não em boites ou cabarés, 

São estas voltas uma constante troca de pés.

Repimpas firme uma silhueta de juventude

Lembrando os verdes anos muito amiúde


Na música ao vivo, soalho antigo, e já comido

E o jantar fica perdido e ouvido algo entupido.

Lá dás o corpo ao manifesto e sem protesto

És suave sombra a envolver o corpo delas

Mas ao deitar é que são elas.

Perdes as velas.

Dói-te a alma, os cansados pés e as costelas

Vês-te em alto-mar, num barco a naufragar

Sempre picado, sem sentinelas p’ra te acordar

Os pesadelos, tristes flagelos, dormem contigo

Feito peão deste destino bem à medida da solidão.


E, mais uma vez, dormes sozinho, como um mendigo …

como um rio

 

Nos rios doces dos teus beijos

Há desejos

E as águas límpidas correm serenas

No meu peito.

Já não sei onde os pássaros

Vão poisar.

Talvez o seu ninho tenham feito

E de la' vejam o meu mundo

A seu jeito.

Mas eu sei que tanto voo

Tem um fim.

Tanto sangue a correr dentro

De mim

Há-de ser um caminho

Ao descanso no teu ninho. 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

o anzol

Foi total o espanto encontrado nos olhos dos peixes e das suas bocas famintas. Tinha sido decretada a obrigação de descarregarem uma aplicação que, ate' agora era oferecida, para quem a quisesse usar. Parecia um isco para juntar o cardume. Mas, agora, como iriam comer sem evitar tão falsa refeição e sem denunciar quantos eram e onde cada um se localizava? 

-"Simples", disse o maioral lá do sítio, reunido que fora uma assembleia para discutir tal determinação:

- " Vamos todos nadar 'a volta do anzol até esgotar a energia e provocar um remoinho tão grande que há-de aparecer alguém para tentar compreender esta confusão. Depois atiramos-lhe com o anzol. Talvez tenhamos a sorte de comer!"





terça-feira, 13 de outubro de 2020

Arrábida_Portugal












 

o amor

o sentido da vida
e o marejar
em tanto mar...

o despertar
a um olhar
a onda que vem
a onda que se tem.

o amor
num mundo de desdém...

e o cansaço
tanto, o cansaço
que asfixia
no desejado abraço...

mas o sonho
é isso
o sorriso
no rosto duma criança.

além do mais
em recompensa
fica a esperança
ou certeza
num amanhã que
fará diferença
pelo bater da poesia.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

das margens da solidão

tinha as distâncias no sorriso apagado
e o cigarro descaído no canto da boca.

andava de verbo em verbo, de chapéu na mão
'a espera da chuva para construir uma canção.
 
todos os mares reflectiam-se no olhar opaco
e a voz remendava-se de farrapos velhos.

sentou-se na margem do rio, de costas voltadas 
ao mundo, como barco encalhado. 

um louva-a-deus poisado sobre folha a flutuar
rezava aos peixes que não queriam nadar.

cansado da solidão, mergulhou nas águas
para ouvir melhor o inédito sermão.