“Ou escreves algo que valha a pena ler ou fazes algo acerca do qual valha a pena escrever.” | Benjamin Franklin

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

a verdade [do poço saída]




[A pintura “A Verdade saindo do poço” (1896)*, em baixo, é de autoria de Jean-Léon Gérôme, escultor e pintor francês, e está ligada a uma parábola do século XIX.


Jean-Léon Gérôme, 
Museu Anne de Beaujeu, em Moulins, França.

"Segundo essa parábola, a Verdade e a Mentira se encontram um dia.
A Mentira diz à Verdade:
- Hoje é um dia maravilhoso!
A Verdade olha para os céus e suspira, pois o dia era realmente lindo. 
Elas passaram muito tempo juntas, chegando finalmente ao lado de um poço.
A Mentira diz à Verdade:
- A água está muito boa, vamos tomar um banho juntas!
A Verdade, mais uma vez desconfiada, testa a água e descobre que realmente está muito gostosa. 
Elas se despiram e começaram a tomar banho. 
De repente, a Mentira sai da água, veste as roupas da Verdade e foge.
A Verdade, furiosa, sai do poço e corre para encontrar a Mentira e pegar suas roupas de volta.
O mundo, vendo a Verdade nua, desvia o olhar, com desprezo e raiva.
A pobre Verdade volta ao poço e desaparece para sempre, escondendo nele sua vergonha.
Desde então, a Mentira viaja ao redor do mundo, vestida como a Verdade, satisfazendo as necessidades da sociedade, porque, em todo caso, o Mundo não nutre nenhum desejo de encontrar a Verdade nua."]


não quero saber
nem mesmo da verdade que se perdeu
nem da dor
que cedo ou tarde há-de aparecer.

não me digam mentiras
a mim
que já não estou para as entender.

todas as mentiras
são papoilas pisadas ao amanhecer
pelas botas cardadas que não quero ver
mas rugem seus ódios
nas sombras da noite.

não quero saber
dessas vossas promessas em cantos de sereia
que bastante bem conheceis 
- corre-vos nas veias -
a prometerem novos mundos,
nova epopeia.

não a mim,
que não quero saber se o vosso mundo
é louco ... ou só um pouco.

***

Que ninguém saiba
Da nuvem escura da guerra
A descer sobre girassóis
E os homens feitos terra.
Que ninguém lavre campos
De cruzes espetadas
Ou de corpos cobertos de gelo.
As flores morrem
De raízes desnudadas
Como folhas caídas sobre o chão 
Como se a Primavera fosse velha 
Em extinção.

Não queiram também 
Morrer ou ficar sem pão.





segunda-feira, 5 de setembro de 2022

estações




hoje não espero ninguém.

já todo o meu ser é ocupado

por alguém 

sentada nesta mesa 

à sombra dum sonho

que não deixa silenciar o dia.

ainda bem.

esta é uma boa razão 

para não estar sózinho

a contemplar o resto do verão.


domingo, 7 de agosto de 2022

Pai (Seis de Agosto)

 

foto do autor


[A alma do poeta

Nem todos os poemas podem ser escritos.

Há-os que pela sua dor são proibidos.

São tão pessoais que da sua intimidade

se escondem em palavras impronunciaveis.

lmc]

a sombra rente ao chão

alargou-se:

pisados anos 

tão extensos e vazios

de ti, pai.

ausência que sinto

a cada passo

a cada momento que vivo.

com os sapatos cansados

fui ao sapateiro arranjá-los

e nele vi-te

num sorriso aberto de sol.

fazias anos...

domingo, 1 de maio de 2022

mãe


Havia um sol, um sorriso

pela manhã

uma luz, duma estrela

que eras tu.

Havia um abraço, um beijo

e uma flor nos teus olhos 

como desejo

a desprenderem amor

mãe

como ainda hoje te vejo.

Havia tudo isso 

e um mundo apertado ao teu peito.

Como era grande o sentimento

emanado  

um coração que sofreu por me ter amado...

Hoje, o teu dia seria

se outros dias eu os tivesse

junto a ti

como outros tantos os que perdi.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

...

 


"A Verdade", Eça de Queiroz_jardim da cidade_lisboa

inscrição:
«Sobre a nudez forte da Verdade o manto diáphano da phantasia». de "A Relíquia" [1887]:


1974/25 


antes daquela madrugada

tão triste era a cidade

sem liberdade 

e sem voo e sem canto

sem sonho e sem verdade

sem vontade

de se tornar alegre

e sem maldade.


meu amor 


como te dizer o quão vã era a saudade

de tanta errada mocidade?


o tempo foi passando

tanto 

que hoje mais parece outra vida

mas recordo ainda

esse dia que se fez claridade

quando compreendi

o quão bela é a vermelha flor

que se chama Liberdade.


sexta-feira, 8 de abril de 2022

a noite e o silêncio

asas de silêncio no voo suspenso

- rosto-sombra da noite -

pálpebras doces no sono extenso

que batem sem bater 

no respirar do teu corpo alado

preso ao luar 

meu sonho e dedicado fado.

domingo, 27 de março de 2022

viagem dum olhar - Kiev 2022

 



"Perdemos repentinamente

a profundidade dos campos

os enigmas singulares

a claridade que juramos conservar

mas levamos anos

a esquecer alguém

que apenas nos olhou."



in A Noite Abre Meus Olhos

José Tolentino Mendonça


O último degrau

foto: headtopics.com


Teus olhos perdidos

vagueiam na paisagem em ruínas 

como se cinza e pó os quisessem habitar.


Surdos às dores

(esses alimentos sem sabores)

expandem o olhar 

pela janela do combóio 

sem retorno

que finalmente te há-de resgatar.


Tanto o cansaço e tanto o medo,

a fome, o desespero, a morte 

a rondar,

que mais não podes balbuciar

a raiz da palavra mãe (terra de bem)


Partes 

e a tua alma presa aos escombros

não sabe se teu corpo 

um dia 

dela se voltará a ocupar.


segunda-feira, 21 de março de 2022

Dia da Poesia

Da palavra escrita 

o rosto oculto

e a sombra da voz 

imóvel 

nos gestos suspensos.

Leio-te agora os lábios 

onde todas as palavras

tomam sentido 

no movimento da vida.

domingo, 6 de março de 2022

outro tempo

 "Nem eu sou eu dentro do tempo

nem completamente fora dele"

Ahmet Hamdi Tapinar


quando 

todo o tempo do mundo

era esse mundo 

tão pequeno

que por dentro desse tempo 

eu o via

tão belo, tão distinto, 

tão meu,

que mais parecia 

que esse mundo 

era eu

havia - há - outro tempo

por fora desse tempo  

que então eu não via:

um tempo 

tão gasto,

tão perdido, 

mas mesmo assim 

enternecido. 


domingo, 27 de fevereiro de 2022

as rosas negras

 


foto net


reeditado de 2016

Estas eram as palavras ditas a propósito do perigo em que o Mundo caminhava para o que hoje parece uma situação real.

O artigo então publicado nos jornais, num tempo em que não se deu a atenção devida, vem chamar-nos a atenção de que este mesmo Mundo é um sítio perigoso demais para estarmos descansados.

Tudo parece mais cinzento no espírito de quem nos governa e decide. Falam e agem com ódio, com rancor, com um sentido auto-destrutivo.

De agressão em agressão, de escalada em escalada, de provocação em provocação, de perda de Razão por parte de todos, isto não pára se não houver uma humana certeza: ninguém escapará, se a Paz não for construída, se o Poder não ceder à tentação de subjugar, de conquistar, de explorar, de humilhar um outro Ser.

Todos temos direito à Vida. Todos temos direito à Paz. Todos temos direito à Segurança e ao Pão. TODOS. Todos e cada Um.




"O vosso público, por sua vez, não tem a sensação do perigo iminente - é isso que me preocupa. Como não compreendem que o mundo está a ser puxado numa direção irreversível? Enquanto eles [a maior parte do establishment político-militar ocidental] fazem crer que não se passa nada. Já não sei como hei-de comunicar convosco".

Vladimir Putin



"Estou preocupado, muito preocupado, com que estejamos a caminhar como sonâmbulos para qualquer coisa de absolutamente catastrófico".

Sir Richard Shirreff

....

Deixo-vos o Poema que espero sejam só palavras perdidas ao vento. Palavras nunca nascidas e nunca terem sido
algum dia sequer pensadas e aqui vertidas:




as rosas de todas as hiroshimas

sangram as rosas negras
da madrugada
asas de corvos em sombras 
estendidas
- planície 
do nosso descontentamento -

verdes àguas paradas, 
entre margens 
assombradas, 
nas florestas petrificadas.

confunde-se o tom da 
superfície 
com prados enriquecidos
e a ponte é uma passagem 
para o céu 
de outra miragem

o horizonte é um manto 
funebre 
de tempestade.

ouve-se ao longe 
o mar 
num cadênciado 
martelar
e a maresia 
traz um gosto 
a lágrimas de sal
... no vento nuclear.

já não há como evitar 
tão densa noite
onde seria dia...

nem um só pássaro 
sobrevoa 
as escarpas do além
e este rugido 
do interior da terra
ouve-se intensamente
na revoltada planície
como um grito de dor.

não mais crescerá 
uma só flor.

tacteio essas sombras 
com mãos caídas
pela áspera rocha 
vertida 
na paisagem e na sombra 
projectada.

há pombas brancas 
agarradas e
cinzas e pó 
de extintas manadas.

manchas de musgo 
e répteis 
traçam pinturas rupestres
- natureza morta 
da vida 
volatilizada.

meus olhos 
já pouco enxergam
mas ainda vêem 
os minutos finais
do planeta Terra e
a loucura dos homens
com as suas bombas 
de auto-destruição.

lmc